SOBRE S. GONÇALO DE LAGOS (I)


"Ermitão - Há poucos dias festejaram os Religiosos de Sto. Agostinho três Santos novos da sua Ordem, Sto. António de Aquila, Sto. Agostinho Novélo, e Sto. António de Amandula, e sedo festejaram S. Gonçalo de Lagos honra da nossa Monarquia, e o único Santo do Reino do Algarve de que há notícia. Há tempo que se prometeu em uma Conferência contar a sua vida, e constando-me as diligências, que os Religiosos faziam em Lisboa, Torres Vedras, e Lagos, para impetrarem do Sumo Pontífice a declaração de que se não entenderam com ele os Decretos do Santíssimo Padre Urbano VIII, pedia a um Eclesiástico devotíssimo do Santo um caderno da sua vida, que ele compusera para imprimir, e outro, que por certo desgosto deixou por depurar, e ambos lerei em várias Conferências, porque mais haveis gostar do suave estilo do autor, do que do meu. Diz pois este primeiro Vida de S. Gonçalo de Lagos da Ordem dos Ermitas de Santo Agostinho da Província de Portugal etc. Protestação. O Autor desta obra protesta, que tudo o que nela está escrito sujeita à censura da Santa Igreja Católica Romana, e se conforma com os Decretos dos Sumos Pontífices, especialmente com os do Santíssimo Padre Urbano VIII de 13 de Janeiro de 1625 aprovados em 25 de Junho de 1634, e a modificação feita pelo mesmo Sumo Pontífice em 5 de Junho de 1631, no que tudo declarou o Santíssimo Padre, que não era tenção proibir o culto público, e o título de Santo aos que tivessem estas coisas por tempo imemorial antes dos seus Decretos, ou por consentimento, e aprovação dos Bispos, ou por voz comum, e veneração dos Povos, como também declarou que o tempo imemorial, que para isso requeria, eram cem anos antes dos seus Decretos: ao que obedientíssimo o Clero, Nobreza, e Povo de Portugal, e Algarves conservaram, e continuaram o culto público total de Santo a S. Gonçalo de Lagos da mesma sorte que antes dos Decretos do Santíssimo Padre Urbano VIII se lhe dava até o presente dia (como mostraremos no fim desta obra depois do tratado dos seus milagres) porque antes dos tais Decretos tinha o Santo cento e trinta e nove anos de culto de Padroeiro de Torres Vedras com voto solene do Senado, duzentos e doze anos do mesmo culto com Confraria, e aprovação universal do Povo, e o mesmo de consentimento e aprovação dos Excelentíssimos e Reverendíssimos Arcebispos de Lisboa, que iam visitar, e levar-lhe ofertas concedendo Indulgências a quem o venerava; razão, porque no ano de 1656 imprimiu em Lisboa com todas as licenças o M. Fr. António da Purificação a segunda parte da Crónica da sua Província, e nela a vida de S. Gonçalo de Lagos com este nome, tratamento, e culto, que agora se lhe dá nesta obra, fiel, e substancialmente extraída da sua até ao fim do tratado dos milagres.

Agora começa o Autor elegantemente a vida do Santo desta sorte.


I CAPÍTULO

Pátria, País, e Acções de S. Gonçalo Até Receber o Hábito de Sto. Agostinho no Convento de Nossa Senhora da Graça, de Lisboa.

Renasce das cinzas do esquecimento as memórias de S. Gonçalo, as acções do melhor Traumaturgo antigamente venerado objecto dos cultos religiosos de um, e outro Reino, hoje entre os seus apenas conhecido, dos estranhos totalmente ignorado; desgraça original da Nação Portuguesa, que até contrai a virtude heróica, talvez porque os naturais santos até no Empireu, onde a glória do mundo não faz dano, e o culto, e lembrança humana é prémio, querem em seu lugar o desinteresse heróico, com que parece se gozam do nosso esquecimento, favorecendo-nos com excesso, quando nós mais ingratos,  e adquirindo a sua virtude assim maiores créditos, quando nós os perdemos de agradecidos. Tudo veremos na brevidade suma, com que escrevemos esta admirável vida.

Na Cidade de Lagos Reino do Algarve nasceu S. Gonçalo de pais conhecidos pela virtude, mas ambos de geração humilde, de um, e outro ignoramos o nome. Criaram a Gonçalo com aquele ensino, que só pais santos sabem dar neste mundo, e cuja falta o tem arruinado: e para que só a Deus servisse nesta vida, e juntamente os melhorasse de fortuna com honras, e dignidade Eclesiástica, o mandaram aprender a ler, e escrever, singular prenda, em que não só levou aos bons daquele século vantagem conhecida, mas aos bons até no presente causa inveja. Ocuparam-no logo no estudo da Gramática, de que resultou saber a língua Latina com rara perícia nos anos, em que ainda os de melhor engenho costumam ignorá-la, ou dar os primeiros, e pouco adiantados passos em aprendê-la.

Cresceu Gonçalo, e com ele a virtude, fruto do ensino, e exemplo dos pais, que lha inspiravam sempre, cuidado especial da providência, ventura em todos os séculos muito rara, que a ser menos, ou a ser comum, nenhum, ou poucos receberiam o Baptismo, sem que os visse Santos em breve tempo o mundo, porque para o serem lhes bastava o exemplo, e de faltar este nos pais se segue o dano, os vícios, insultos, e a castigo, ruína dos Impérios, povoação do inferno. Não temeu este pouco a Gonçalo vendo-o na adolescência tão bem instruído, e com exemplos domésticos tão fortificado; e como sempre achou armas prontas nesta idade no vigor natural, e fervor do sangue, aproveitou-se deste, e daquele, e presentou-lhe batalha com ardor insolente pelos Generais melhores da desonestidade. Sentiu a guerra em todo o sentido o casto, temeroso, e feliz mancebo, e sem perder já mais a esperança alentando, com tal excesso debilitou o corpo, e quebrou com a penitência as armas do inimigo, que nunca mais até à idade consumada se atreveu a intentar a guerra mais, que uma vez, em que com assaz vergonha achou as virtudes de Gonçalo por mercê da graça tão unidas com uma prodigiosa inocência, que, nem depois de conseguir a victoria, conheceu que lhe presentavam batalha. Tão pouco lhe custou o vencê-la! tal era a fortaleza, que não sentiu a luta! Nunca já mais desde o primeiro assalto, deu perfeito descanso ao corpo, na Oração ocupava o tempo do sono, além do que no dia lhe permitia o estudo, e a disciplina levava o do recreio, e tudo coroava o cilício contínuo.

Nada fia de si o varão justo, e como se havia em si fiar Gonçalo? quanto maiores eram os triunfos, tanto mais receava os inimigos. Fugia das ocasiões, ciladas certas, em que até agora só não caíram desgraçadas as purezas que fugiram delas. Jacte-se, e creia o contrário a malícia moderna mascarada de inocência, nunca se há-de mudar o ditame da virtude heróica para crer inflexíveis os vimes onde o não foram os cedros fortes. Afirma todos os autores, que falam neste Santo, que sempre conservara a graça do Baptismo, virgem saíra do desterro. Definia Gonçalo este mundo um imundo caos deste horrendo vício; e tanto receava ser manchado, ao mesmo tempo, em que era intrépido, que só pedia a Deus na Oração fervoroso lhe mostrasse uma cova, em que feliz arminho antes perdesse a vida seguro, que gozá-la, e manchar-se no trânsito; uma Religião em que deles mais perto, pelejasse fim forte, mas seguro, vivesse puro fim à força de trabalho, mas com outro descanso tendo-o mais vizinho; uma torre, em que fim vigiasse cada hora, mas tivesse reparos a pureza na clausura, nos votos, na vontade Divina.

Agradaram a Deus estes desejos santos, dispôs com alta providência os meios, para Gonçalo os satisfazer todos. Tinha o santo mancebo uns parentes, que obrigados de negócios graves vieram a Lisboa tratar deles. Movido de superior impulso, sem dizer aos parentes o intento, ofereceu-se Gonçalo a servi-los no caminho, e ajudá-los eficazmente em tudo, porque lhe dizia ao coração o Espírito Santo acharia o fim do seu desejo.

Saiu enfim de Lagos este Abraão novo, chegou a Lisboa já mundo pequeno; e quando a grandeza, e o tumulto, a novidade, a delícia, e o pasmo lhe podiam ocupar o tempo, levar a atenção, e atrair o ânimo, não teve Gonçalo outros cuidados, não deu passos, nem ocupou os olhos mais que em ver Mosteiros, e Templos, notando o modo de vida em todos, até algum lhe igualar os desejos. Chegou enfim o venturoso dia, em que determinara a providência dar a Sto. Agostinho esta jóia; entrou na Igreja de Nossa Senhora da Graça, e estando em oração fervorosa ouviu uma locução interna, em que o Espírito Santo lhe dizia, aquela era a casa que buscava. Levantou-se da oração Gonçalo, buscou o Prior do Convento, pediu humildemente o Hábito; e como os que a providência manda, disseram dos que a diligência busca, assim o Prior como os Religiosos de sorte se lhe mostraram afectos, e a sua prática os deixou atraídos, que, dando-se parte ao Provincial logo, passados poucos dias tomou Gonçalo o Hábito.

(eis a continuação, na II parte)

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